Desde finais do século XV que a coroa portuguesa inicia um processo de transposição para os territórios ultramarinos do aparelho judicial letrado que desde a baixa idade média vinha sendo instituído no reino. Os arquipélagos atlânticos serão os primeiros territórios contemplados com juízes letrados nomeados de forma regular, à semelhança do que se passava no continente. Os primeiros oficiais tinham uma jurisdição alargada de fiscalização das justiças locais, de carácter não-letrado. São corregedores ou ouvidores, os primeiros juízes letrados ultramarinos. Vão sendo estabelecidos em pontos-chave e garantindo a supervisão e a aplicação do direito régio, por oficiais especializados e hierarquicamente enquadrados, nos pontos mais dinâmicos dos domínios portugueses. O período filipino vai conhecer um investimento na reforma e dotação do aparelho com instituições mais sólidas. Criam-se tribunais de Relação em Goa e na Baía. É, de resto, na América portuguesa que as estruturas de administração de justiça vão conhecer a maior complexificação, sobretudo ao longo do século XVIII. O movimento de expansão para as regiões interiores do Brasil, estimulado pela descoberta e exploração mineira mas, também, pelo enorme aumento demográfico que a América portuguesa conhece no período, traduz-se num crescimento acelerado das jurisdições letradas que vão sendo criadas. Com a independência do Brasil, assistimos a uma mudança radical na configuração do aparelho, que se volta para África onde, até meados do século XIX, apenas haviam sido criadas jurisdições de âmbito geográfico alargado. A segunda metade do século XIX assiste a um aumento dos ofícios de justiça do estado no ultramar. O vídeo abaixo faz um mapeamento cronológico mas simplificado da evolução da configuração do aparelho judicial português presente no seu ultramar, desde a criação dos primeiros lugares, no século XV, até ao final da I República. Link para a emissão do programa Filhos da Nação, da RTP, em que falámos sobre o trabalho em torno dos textos deixados pelo Fr. Luís de São Bento e Fr. António Soares e os juízes letrados portuguesas da época moderna.
Para poder servir a justiça letrada, os recém-formados pela Universidade de Coimbra ou, de facto, os detentores de uma formação em direito, uma vez que não estavam excluídos os formados por universidades estrangeiras, deviam submeter-se a uma selecção promovida pelo tribunal do Desembargo do Paço, que era a instituição responsável pela gestão do aparelho judicial português. Este exame é designado genericamente por "leitura de bacharéis" era composto, na prática, por dois momentos. No primeiro momento, o Desembargo do Paço promovia uma investigação ao candidato e aos seus ascendentes mais directos (pais e avós), por forma a garantir que eles preenchiam os critérios que definiam o ideal do juiz letrado: ser cristão-velho e viver de forma nobre, não quebrando a ortodoxia católica nem provindo de famílias de "oficiais mecânicos", isto é, de pessoas que vivessem do seu trabalho - literalmente, que para trabalhar usassem as suas mãos denotando, dessa forma, a pertença aos escalões mais baixos da sociedade. Eram as chamadas "habilitações para a leitura de bacharéis". Um ou mais juízes que servissem nas terras de onde a família do candidato fosse originária, deslocavam-se ao terreno, ouviam um conjunto de testemunhos e produziam um parecer sobre a conformidade do candidato com os critérios estabelecidos por lei. No momento das habilitações, o candidato devia, igualmente, fazer prova de não possuir "culpas" formadas contra si e de que assistira nos auditórios dos tribunais pelo tempo previsto na lei. No caso de ser aprovado nas habilitações, o candidato avançava para o exame propriamente dito, a "leitura", que tinha lugar no Desembargo do Paço. A partir de um sorteio de temas, feito de véspera, o candidato devia proferir uma lição, "leitura", perante um júri composto por desembargadores do Paço, os juízes mais destacados do reino. O júri votava a qualidade da "leitura", com classificações que podiam ser de "Muito Bem", "Bem" e "Leu", no caso dos aprovados, e de "Voltar à Universidade" ou "Reprovado", no caso dos que não eram considerados capazes para o serviço.
As lógicas de Antigo Regime, nomeadamente a possibilidade de recurso à graça régia, permitia abrir uma via para alguns dos candidatos que, no decurso das habilitações, tivessem sido reprovados, nomeadamente por motivos de "mecânica" de algum dos familiares. Para esses casos, o rei possibilitava a admissão ao serviço em troca da assinatura de um compromisso ("fazer termo") em servir a coroa em lugares ultramarinos, em caso de necessidade. Desta forma, tentava-se garantir a existência de candidatos a lugares que, sobretudo nos anos mais recuados do nosso período, se apresentavam como especialmente perigosos e que os juízes letrados tinham tendência a evitar. Desde 1539 que, pela lei de 13 de Janeiro, era obrigatória a formação universitária em direito para exercer "ofícios de julgar" providos pela coroa e pelas jurisdições senhoriais donatárias. A formação em direito era, ao longo da época moderna, um exclusivo, em todo o mundo português, da Universidade de Coimbra. A oferta repartia-se entre a formação em direito canónico (Cânones) e em direito civil (Leis). O grau universitário mais comum neste longo período é o de bacharel, embora as Faculdade de Cânones e de Leis também outorgassem os graus de licenciado e de doutor. Os jovens formados em qualquer dos direitos que se candidatavam a ofícios de julgar, muitas vezes referidos pela documentação da época como "lugares de letras", eram, na sua esmagadora maioria bacharéis. No mundo extra-académico do quotidiano do Antigo Regime português, "bacharel" é o grau que normalmente identifica quem cursou a universidade em Coimbra e "letrado" é quase um seu sinónimo. "Letrado" era quem possuía as "Letras" e as "Letras" eram o conhecimento académico. Aos poucos, "bacharel" e "letrado" vão se tornando sinónimos de "jurista" e de "juiz". Outra palavra que entra neste universo de referências é a de "ministro" que identifica aquele que "exerce ofício e emprego de Justiça, ou Político, ou Evangélico, debaixo da subordinação aos Soberanos", segundo Bluteau. Quando falamos em "juízes letrados" usamos esta designação para os distinguir de outro tipo de juízes que com eles coexistiam na época moderna: os chamados "juízes ordinários", escolhidos pelos concelhos para onde a coroa ou os senhorios donatários não nomeavam juízes. Este "juízes ordinários", não-letrados, muitas vezes nem sequer saberiam ler. Aplicavam os usos e costumes na resolução dos conflitos dos seus concelhos. A mancha territorial dos concelhos que, desta forma, não estavam sob a jurisdição de juízes letrados nomeados pela coroa era importante, representando mais de dois terços da totalidade dos concelhos da época moderna. Os juízes letrados aplicavam a lei régia, seguiam as normas do direito erudito, ensinado na universidade. Estava-lhes aberta, também, a chamada "carreira das letras" que, na prática, era a possibilidade de um percurso de serviço de diferentes ofícios. O bom serviço num lugar poderia significar a nomeação para um novo lugar e essa nova nomeação obedecia a um princípio de promoção do juiz. Por outras palavras, a cada nova nomeação, o juiz deveria ver o seu estatuto e a importância do lugar aumentada. Este princípio prefigura o que entendemos por carreira. No entanto, apenas quando o juiz alcançava o estatuto de desembargador, isto é, quando ascendia a juiz de um dos tribunais de relação do reino ou do seu ultramar, é que essa nomeação era vitalícia. Até lá, não existia qualquer garantia de obtenção de novas nomeações. Contudo, ao longo da época moderna, e sobretudo com a entrada no século XVIII, observamos uma crescente tendência para a prossecução de percursos consistentes que nos permitem falar na existência de uma "carreira das letras" na época moderna, a que muitas vezes nos referimos como cursus honorum por descrever melhor a sucessão de ofícios. Do alto desta base de dados, dois séculos de história nos contemplam. E também se poderia dizer que do alto desta base de dados, mais de vinte anos de história pessoal vos contemplam. A investigação que resultou no conjunto de dados que partilho neste site começou muito antes de existir muito do que me rodeia presentemente. Era outro mundo, quase. Tudo terá começado por volta de 1992, quando tive a sorte de colaborar num projecto coordenado pelo Prof. António Hespanha no Instituto de Ciências Sociais (ICS). Integrei a equipa que desenvolvia uma base de dados bio-bibliográfica sobre juristas portugueses que produziram literatura jurídica no Antigo Regime. O projecto chamava-se SILA (Storia Jurisprudentiae Lusitaniae Antiquae) e recorria ao que de mais moderno existia na altura - que era a plataforma dBase, que corria em DOS e exigia alguma paciência dos utilizadores não-iniciados. Essa mesma base de dados teve outras versões. Foi transposta para um produto de ponta que surgiu pouco depois, o askSam, que era um misto de base de dados estruturada e de base de dados de texto livre. Mas acabámos por concluir que não servia inteiramente os propósitos das buscas e acabou por fixar-se no Access da Microsoft. Eu era um jovem tarefeiro e, com os meus colegas, tinha como incumbência introduzir dados biográficos sobre autores, que pesquisava nos índices das Chancelarias Régias da Torre do Tombo. Foi a minha entrada no fascinante mundo do "trabalho de arquivo" e, ao mesmo tempo, no aliciante universo dos nossos "togados manes".
Comecei a desenvolver um interesse pessoal pelos autores que tinham servido lugares de justiça e, com o passar do tempo, fui pensando na hipótese de enveredar pelo estudo do grupo específico dos juízes letrados. Em conversas com o Prof. Hespanha a coisa cimentou-se e foi ser desenvolvida numa estadia de curta duração na Universidade de Copenhaga, no Institut for Humanistisk Informatik com quem o nosso grupo de investigação tinha contacto e que, na altura, dava passos inovadores no desenvolvimento de bases de dados prosopográficas, na exploração da dimensão de análise de redes e dos sistemas de informação geográfica em contexto histórico. Estávamos em 1995, ainda. Ali surgiu o embrião desta base de dados. Trabalhava, na altura, com uma amostragem de cerca de 600 indivíduos (menos de 10% do que viria a ser o universo total), construindo a estrutura e os mecanismos de exploração dos dados de uma base que, pouco depois, seria a ferramenta central na pesquisa que deu origem à minha tese de mestrado. Anos depois, viria o doutoramento na EHESS e, de uma amostragem, passei para o uso da totalidade do universo. Para essa decisão em muito pesou o fascínio que, entretanto, cresceu por uma documentação que, na base de dados SILA, se escondia por detrás de uma enigmática fórmula: «BNL, São Bento, "M.M.", cód. xxxx, fól. xxx». Tratava-se do Memorial de Ministros, da autoria, achava-se na altura, de Frei Luís de São Bento. Quando entrara nesse projecto, essa fonte já fora explorada por outros colegas, e eu só consultava os seus registos na base. Mas eram sempre os registos sobre carreiras na justiça e, por isso, a curiosidade foi aumentando em relação a uma fonte que parecia talhada para o que eu gostaria de estudar. Quando fui à Biblioteca Nacional para conhecer pessoalmente o Memorial de Ministros percebi tratar-se de um conjunto monumental de textos, resultado de anos e anos de trabalho e que, infelizmente, nunca tivera uma versão final. Rapidamente percebi que o que eu me propunha fazer já tinha sido tentado duzentos anos antes de mim, com a tecnologia disponível na época. Decidi, por isso, trabalhar com Fr. Luís de São Bento e, descobri nessa altura, com Fr. António Soares. Ali estava um manancial de informação esmagador. Mas convinha verificar do rigor do que era dito, até porque facilmente se entendia que nem todos os seus registos tinham o mesmo grau de certeza nem a mesma quantidade de informação. Um estudo prosopográfico é muito exigente na quantidade e uniformidade da informação e, por isso, o historiador em que eu me estava a tornar, iria ter que trabalhar outro tanto. O passo mais decisivo foi o tratamento dos livros que, repartidos entre a Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional e a Biblioteca da Ajuda, fazem o assento dos exames da "leitura de bacharéis" uma vez que permitiam construir uma série muito sólida de todos os formados pela Universidade de Coimbra - um critério obrigatório para se ser admitido ao serviço da justiça desde o início do séc. XVI - que se propuseram a seguir os "lugares de letras". Assim, conseguia estabelecer com bastante certeza o universo global dos que serviram a coroa como juízes letrados, desde os juízes mais destacados àqueles que apenas serviram um lugar para depois desaparecerem dos arquivos. Cruzando com os dados do Memorial de Ministros, percebi que a série não era total porque a coroa cooptava professores de direito e outros juristas distintos para servir nos tribunais principais do reino, isentando-os, muitas vezes, da "leitura de bacharéis". Mas esses, por serem figuras destacadas do meio jurídico português, deixaram mais rasto e, por isso, eram menos difíceis de localizar. Com essa série fixada, a procura de dados era, finalmente, orientada e controlada. A estrutura da base de dados e a sua natureza relacional permitiam tornar a recolha mais eficiente, que foi o que fiz durante vários e prazenteiros anos. O grosso dos registos da base de dados estava fixado antes da redacção da tese de doutoramento. De então para cá, foi sendo corrigida pontualmente, acrescentada com dados que encontro ou que colegas me fazem chegar. Na realidade, e tal como o Memorial de Ministros, trata-se de um trabalho que nunca estará concluído. O passo que faltava dar, depois de todos estes anos em que a base tem estagiado no(s) meu(s) computador(es), era torná-la acessível ao estudiosos interessados no aparelho judicial português de Antigo Regime. Era uma tarefa complexa de fazer, sobretudo para quem, como eu, sabe mexer com o Access mas não domina minimamente os sistemas de partilha online de bases de dados como o SQL. Recentemente encontrei, numas buscas no Google, uma plataforma chamada Caspio que gere a disponibilização online de bases de dados Access sem necessidade de recurso, por parte do utilizador, a programação. Tudo funciona como se do Access se tratasse e, por isso, a partilha tornou-se, finalmente, uma possibilidade, sem necessidade a recorrer a intermediários. Durante estes anos todos, procurei sempre facultar os dados da minha base aos colegas que me contactaram mas achava que era importante que a minha mediação deixasse de ser necessária e que os investigadores pudessem fazer as buscas que entendessem com os critérios que quisessem. Este site procura permitir isso se bem que, por enquanto, sem todo o potencial que eu desejava. De qualquer forma, procurei contornar as limitações abrindo o mais possível as possibilidades de busca de forma a permitir encontrar quer a informação sobre um indivíduo específico, quer a aproximação a grupos de indivíduos que partilhem determinados critérios. Por se tratar de uma base de dados pessoal, é possível que contenha, ainda, erros de digitação, falhas na uniformização, uma ou outra nota pessoal ou lacunas por falta de consulta de determinada documentação. Para todas estas falhas, peço a compreensão do utilizador. Tentei corrigi-las e eliminá-las mas acredito que sem um sucesso esmagador. Para tentar remediar essas questões, abri neste site uma secção que permite o envio de mensagens que ajudem a corrigir ou a acrescentar a informação aqui reunida. Desde já agradeço as eventuais achegas. Quando chamei ao site Memorial de Ministros quis fazer a ponte entre este esforço de recolha e partilha de informação e o trabalho monumental que, ao longo do século XVIII, o Fr. Luís de São Bento e, depois, o Fr. António Soares, produziram e nos deixaram. Trata-se de uma espécie de Memorial de Ministros 2.0. |
AutorNuno Camarinhas, investigador do CEDIS, Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa. HistóricoCategorias
Todos
|