O exame da «leitura de bacharéis» era precedida por uma investigação exaustiva sobre as habilitações do candidato. Do resultado dessa apuração dependia a admissibilidade à leitura. As habilitações eram conduzidas por juízes letrados das terras de origem do candidato até à segunda geração dos seus ascendentes. Caso houvesse mais do que uma terra de origem, as inquirições podiam ser conduzidas por outros juízes. Não raras vezes, quando a origem geográfica do candidato era remota, nomeadamente no ultramar, o Desembargo do Paço poderia ordenar que as inquirições fossem conduzidas num lugar onde a família fosse conhecida, nomeadamente em Lisboa. Era a chamada «pátria comum». Todo o processo era dirigido e coordenado pelo Desembargo do Paço que procedia à nomeação dos inquiridores, indicava as terras escolhidas para serem palco da investigação e, no final, recebia e tinha a palavra final sobre as habilitações. Os juízes que levavam a cabo as inquirições recebiam uma lista das questões que deviam colocar às testemunhas (cf. a ilustração deste texto). Com estas inquirições, procurava garantir-se que os candidatos cumpriam com os requisitos morais para desempenhar funções ao serviço da coroa e da justiça. Entre esses requisitos estava a pertença a famílias cristãs-velhas, a «limpeza de sangue» e o não exercício de profissões «mecânicas», isto é, que, desempenhadas com as mãos, retirassem nobreza à família. O inquiridor deveria interrogar sete testemunhas que conhecessem o candidato ou a sua família mas desconhecessem o motivo por que eram questionadas. O processo das habilitações produzia papéis que, muitas vezes, estão apensos aos documentos das habilitações, conservados na Torre do Tombo. A sua consulta permite, quando completos, inserir o candidato no seu meio social, quer pelo que é dito pelas testemunhas quer pela simples análise do perfil daqueles depuseram. Regra geral, eram aprovados os candidatos cujas habilitações não tivessem encontrado nenhum vestígio de heterodoxia. Contudo, era possível que algumas excepções fossem abertas para candidatos com falhas, sobretudo no que diz respeito à origem «mecânica», a menos problemática das falhas. Nestes casos, o Desembargo do Paço podia passar uma dispensa que tinha, como contrapartida, a assinatura de um termo segundo o qual o candidato se comprometia a servir nos lugares do ultramar caso a coroa necessitasse. A documentação identifica estes casos com a expressão «Fez termo». Para poder servir a justiça letrada, os recém-formados pela Universidade de Coimbra ou, de facto, os detentores de uma formação em direito, uma vez que não estavam excluídos os formados por universidades estrangeiras, deviam submeter-se a uma selecção promovida pelo tribunal do Desembargo do Paço, que era a instituição responsável pela gestão do aparelho judicial português. Este exame é designado genericamente por "leitura de bacharéis" era composto, na prática, por dois momentos. No primeiro momento, o Desembargo do Paço promovia uma investigação ao candidato e aos seus ascendentes mais directos (pais e avós), por forma a garantir que eles preenchiam os critérios que definiam o ideal do juiz letrado: ser cristão-velho e viver de forma nobre, não quebrando a ortodoxia católica nem provindo de famílias de "oficiais mecânicos", isto é, de pessoas que vivessem do seu trabalho - literalmente, que para trabalhar usassem as suas mãos denotando, dessa forma, a pertença aos escalões mais baixos da sociedade. Eram as chamadas "habilitações para a leitura de bacharéis". Um ou mais juízes que servissem nas terras de onde a família do candidato fosse originária, deslocavam-se ao terreno, ouviam um conjunto de testemunhos e produziam um parecer sobre a conformidade do candidato com os critérios estabelecidos por lei. No momento das habilitações, o candidato devia, igualmente, fazer prova de não possuir "culpas" formadas contra si e de que assistira nos auditórios dos tribunais pelo tempo previsto na lei. No caso de ser aprovado nas habilitações, o candidato avançava para o exame propriamente dito, a "leitura", que tinha lugar no Desembargo do Paço. A partir de um sorteio de temas, feito de véspera, o candidato devia proferir uma lição, "leitura", perante um júri composto por desembargadores do Paço, os juízes mais destacados do reino. O júri votava a qualidade da "leitura", com classificações que podiam ser de "Muito Bem", "Bem" e "Leu", no caso dos aprovados, e de "Voltar à Universidade" ou "Reprovado", no caso dos que não eram considerados capazes para o serviço.
As lógicas de Antigo Regime, nomeadamente a possibilidade de recurso à graça régia, permitia abrir uma via para alguns dos candidatos que, no decurso das habilitações, tivessem sido reprovados, nomeadamente por motivos de "mecânica" de algum dos familiares. Para esses casos, o rei possibilitava a admissão ao serviço em troca da assinatura de um compromisso ("fazer termo") em servir a coroa em lugares ultramarinos, em caso de necessidade. Desta forma, tentava-se garantir a existência de candidatos a lugares que, sobretudo nos anos mais recuados do nosso período, se apresentavam como especialmente perigosos e que os juízes letrados tinham tendência a evitar. |
AutorNuno Camarinhas, investigador do CEDIS, Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa. HistóricoCategorias
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