Link para a emissão do programa Filhos da Nação, da RTP, em que falámos sobre o trabalho em torno dos textos deixados pelo Fr. Luís de São Bento e Fr. António Soares e os juízes letrados portuguesas da época moderna.
Para poder servir a justiça letrada, os recém-formados pela Universidade de Coimbra ou, de facto, os detentores de uma formação em direito, uma vez que não estavam excluídos os formados por universidades estrangeiras, deviam submeter-se a uma selecção promovida pelo tribunal do Desembargo do Paço, que era a instituição responsável pela gestão do aparelho judicial português. Este exame é designado genericamente por "leitura de bacharéis" era composto, na prática, por dois momentos. No primeiro momento, o Desembargo do Paço promovia uma investigação ao candidato e aos seus ascendentes mais directos (pais e avós), por forma a garantir que eles preenchiam os critérios que definiam o ideal do juiz letrado: ser cristão-velho e viver de forma nobre, não quebrando a ortodoxia católica nem provindo de famílias de "oficiais mecânicos", isto é, de pessoas que vivessem do seu trabalho - literalmente, que para trabalhar usassem as suas mãos denotando, dessa forma, a pertença aos escalões mais baixos da sociedade. Eram as chamadas "habilitações para a leitura de bacharéis". Um ou mais juízes que servissem nas terras de onde a família do candidato fosse originária, deslocavam-se ao terreno, ouviam um conjunto de testemunhos e produziam um parecer sobre a conformidade do candidato com os critérios estabelecidos por lei. No momento das habilitações, o candidato devia, igualmente, fazer prova de não possuir "culpas" formadas contra si e de que assistira nos auditórios dos tribunais pelo tempo previsto na lei. No caso de ser aprovado nas habilitações, o candidato avançava para o exame propriamente dito, a "leitura", que tinha lugar no Desembargo do Paço. A partir de um sorteio de temas, feito de véspera, o candidato devia proferir uma lição, "leitura", perante um júri composto por desembargadores do Paço, os juízes mais destacados do reino. O júri votava a qualidade da "leitura", com classificações que podiam ser de "Muito Bem", "Bem" e "Leu", no caso dos aprovados, e de "Voltar à Universidade" ou "Reprovado", no caso dos que não eram considerados capazes para o serviço.
As lógicas de Antigo Regime, nomeadamente a possibilidade de recurso à graça régia, permitia abrir uma via para alguns dos candidatos que, no decurso das habilitações, tivessem sido reprovados, nomeadamente por motivos de "mecânica" de algum dos familiares. Para esses casos, o rei possibilitava a admissão ao serviço em troca da assinatura de um compromisso ("fazer termo") em servir a coroa em lugares ultramarinos, em caso de necessidade. Desta forma, tentava-se garantir a existência de candidatos a lugares que, sobretudo nos anos mais recuados do nosso período, se apresentavam como especialmente perigosos e que os juízes letrados tinham tendência a evitar. Desde 1539 que, pela lei de 13 de Janeiro, era obrigatória a formação universitária em direito para exercer "ofícios de julgar" providos pela coroa e pelas jurisdições senhoriais donatárias. A formação em direito era, ao longo da época moderna, um exclusivo, em todo o mundo português, da Universidade de Coimbra. A oferta repartia-se entre a formação em direito canónico (Cânones) e em direito civil (Leis). O grau universitário mais comum neste longo período é o de bacharel, embora as Faculdade de Cânones e de Leis também outorgassem os graus de licenciado e de doutor. Os jovens formados em qualquer dos direitos que se candidatavam a ofícios de julgar, muitas vezes referidos pela documentação da época como "lugares de letras", eram, na sua esmagadora maioria bacharéis. No mundo extra-académico do quotidiano do Antigo Regime português, "bacharel" é o grau que normalmente identifica quem cursou a universidade em Coimbra e "letrado" é quase um seu sinónimo. "Letrado" era quem possuía as "Letras" e as "Letras" eram o conhecimento académico. Aos poucos, "bacharel" e "letrado" vão se tornando sinónimos de "jurista" e de "juiz". Outra palavra que entra neste universo de referências é a de "ministro" que identifica aquele que "exerce ofício e emprego de Justiça, ou Político, ou Evangélico, debaixo da subordinação aos Soberanos", segundo Bluteau. Quando falamos em "juízes letrados" usamos esta designação para os distinguir de outro tipo de juízes que com eles coexistiam na época moderna: os chamados "juízes ordinários", escolhidos pelos concelhos para onde a coroa ou os senhorios donatários não nomeavam juízes. Este "juízes ordinários", não-letrados, muitas vezes nem sequer saberiam ler. Aplicavam os usos e costumes na resolução dos conflitos dos seus concelhos. A mancha territorial dos concelhos que, desta forma, não estavam sob a jurisdição de juízes letrados nomeados pela coroa era importante, representando mais de dois terços da totalidade dos concelhos da época moderna. Os juízes letrados aplicavam a lei régia, seguiam as normas do direito erudito, ensinado na universidade. Estava-lhes aberta, também, a chamada "carreira das letras" que, na prática, era a possibilidade de um percurso de serviço de diferentes ofícios. O bom serviço num lugar poderia significar a nomeação para um novo lugar e essa nova nomeação obedecia a um princípio de promoção do juiz. Por outras palavras, a cada nova nomeação, o juiz deveria ver o seu estatuto e a importância do lugar aumentada. Este princípio prefigura o que entendemos por carreira. No entanto, apenas quando o juiz alcançava o estatuto de desembargador, isto é, quando ascendia a juiz de um dos tribunais de relação do reino ou do seu ultramar, é que essa nomeação era vitalícia. Até lá, não existia qualquer garantia de obtenção de novas nomeações. Contudo, ao longo da época moderna, e sobretudo com a entrada no século XVIII, observamos uma crescente tendência para a prossecução de percursos consistentes que nos permitem falar na existência de uma "carreira das letras" na época moderna, a que muitas vezes nos referimos como cursus honorum por descrever melhor a sucessão de ofícios. |
AutorNuno Camarinhas, investigador do CEDIS, Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa. HistóricoCategorias
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